No ordenamento jurídico brasileiro a normatização
legislativa do direito de superfície ocorre no Estatuto da Cidade e no Código
Civil de 2002, este elevando-o à categoria de direito real. Em linhas gerais, através
do direito de superfície o proprietário de um bem imóvel destaca de seu
direito, até então pleno, uma espécie de concessão, onerosa ou gratuita, para
que outra pessoa, que se chamará superficiário, utilize a superfície para
plantar ou construir. Trataremos de um aspecto muito importante acerca do
direito de superfície: a possibilidade de instituí-lo sobre parte específica de
um imóvel.
O direito de superfície é normatizado pelo Estatuto
da Cidade, Lei nº 10.257/2002, nos artigos 21 a 24 e pelo Código Civil de 2002
nos artigos 1.369 a 1.377. Para Venosa (2005, p. 454), o Estatuto da Cidade é
um microssistema e como tal “vigorará sobranceiro no seu alcance de atuação, em
princípio, sobre as demais leis, ainda que posteriores.” Já na opinião de Gonçalves
(2009, p. 414) “com a entrada em vigor, porém, do último diploma houve a
derrogação do aludido Estatuto”. Ilustramos a divergência entre renomados doutrinadores
a fim de consignar que a questão não é pacífica. Em nosso modesto entendimento
Código Civil e Estatuto da Cidade devem conviver sem conflito ao tratar de
direito de superfície, o primeiro aplicando-se aos bens imóveis em geral e o
segundo especificamente aos imóveis urbanos, consoante o que dispõe o artigo
2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil: “A lei nova, que estabeleça
disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem
modifica a lei anterior.”
O direito de superfície não pode ser entendido em
separado do direito de propriedade, pois ele vem a ser exatamente um desdobro
do exercício pleno da propriedade. Explicando melhor: o superficiário, titular
do direito de superfície, ao plantar ou construir, tem possibilidade de usar e
gozar do bem imóvel, subtraindo do proprietário do imóvel tais possibilidades.
Ou seja, estamos diante duas realidades jurídicas paralelas, de um lado o
direito de propriedade limitado por força da instituição do direito de
superfície, de outro o próprio direito de superfície que a se configura como um
direito real sobre coisa alheia.
É partindo exatamente do direito de propriedade que
buscamos demonstrar que é possível instituir direito de superfície sobre uma
parte específica de um determinado imóvel. “A propriedade é um direito primário
ou fundamental, ao passo que os demais direitos reais nele encontram a sua
essência”. (GONÇALVES, 2009, p. 221) Nessa medida, entendemos que é o próprio
direito de propriedade que cria balizas ao surgimento de um direito de
superfície sobre uma parte específica de um determinado imóvel. Claro que, além
da vontade do proprietário, teremos que considerar aspectos de organização do
solo e da função social da propriedade, antes de responder positivamente a
questão central. Logo, além de o proprietário querer conceder o direito de
propriedade sobre parte determinada do imóvel urbano, é necessário que seja
respeitada a política urbana, no que diz respeito a tamanho mínimo de lotes,
ordenação e controle do uso do solo. Se o imóvel for rural há que se obedecer
aos regramentos deste âmbito, como, por exemplo, leis ambientais e obediência
ao tamanho de módulo rural. Mesmo que não estejamos propriamente diante de um
desdobro ou divisão do solo, cremos que essas regras devem ser obedecidas, pois
existem para ordenar e garantir a consecução da função social da propriedade.
O direito de propriedade foi inserido no Título dos
Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição Federal, ao tempo em que este
direito é garantido, há o dever de que a propriedade atenda a sua função
social, é exatamente o que vemos no artigo 5º, XXII e XXIII. Além disso, a
função social da propriedade é alçada ao posto de princípio da ordem econômica,
nos termos do inciso III do artigo 170 da Constituição Federal. Complementando,
segundo o artigo 1.228 do Código Civil, “o proprietário tem a faculdade de
usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer
que injustamente a possua ou detenha.” E nos termos do parágrafo primeiro deste
mesmo artigo “deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais”.
Fica claro que o perfil atual do direito de
propriedade no ordenamento jurídico do Brasil “deixou de apresentar as
características de direito absoluto e ilimitado, para se transformar em um
direito de finalidade social”. (GONÇALVES, 2009, p. 224) É exatamente nesse
contexto que precisamos entender que o direito de superfície existe para
possibilitar uma adequação social e econômica do bem imóvel, tornando viável o
desenvolvimento social e econômico no meio rural e no urbano. Ou seja, ao
conceder o direito de superfície o proprietário está ajudando a sociedade a
vencer o déficit habitacional, a fomentar a produção agrícola e a aquecer a
economia, além de diminuir a nociva especulação imobiliária. Por isso, impedir
que seja instituído o direito de superfície sobre parte específica de
determinado imóvel, por razões de ordem procedimental no que diz respeito às
normas de Registro Público, vai de encontro à diretriz constitucional que
deseja que os imóveis exerçam sua função social. Muitas vezes ao proprietário
não interessa, por diversos motivos, instituir direito de superfície sobre todo
o imóvel. Portanto, tendo em vista que o Código Civil ou a Constituição Federal,
ou mesmo a lei de Registro Público, lei nº 6.015/1973, não vedam a instituição
sobre parte do imóvel, impedir que institua o direito de superfície sobre parte
determinada do imóvel é impedir a consecução da realização da função social da
propriedade.
A ausência de previsão legislação específica
autorizando, ou não, a citada instituição nos fez buscar no âmago daquele que é
o direito real por excelência, a propriedade, a fundamentação de cunho
constitucional e doutrinário para autorizar a instituição do direito de
superfície sobre uma parte específica de determinado imóvel. Não é possível
opor questões procedimentais da Lei de Registro Público, visto que a mesma não
pode ser entendida como um fim em si mesmo, é o que depreendemos do artigo 1º
da Lei nº 6.015/1973: “os serviços concernentes aos Registros Públicos [são]
estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia
dos atos jurídicos”. Pelo exposto, só há uma conclusão possível, a função
social da propriedade autoriza a instituição do direito de superfície sobre
parte determinada do imóvel.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL.
Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>
Acesso em 29 abr. 2012.
BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe
sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6015compilada.htm> Acesso em
29 abr. 2012.
BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001.
Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes
gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm>
Acesso em 29 abr. 2012.
BRASIL.
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>
Acesso em 29 abr. 2012.
GONÇALVES,
Carlos Roberto. Direito Civil
brasileiro, volume V: direito das coisas. 4. ed. rev. São Paulo: Saraiva,
2009. 626 p.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito
civil: direitos reais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. 672 p.
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