quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Direito de Superfície sobre parte específica de um imóvel.


No ordenamento jurídico brasileiro a normatização legislativa do direito de superfície ocorre no Estatuto da Cidade e no Código Civil de 2002, este elevando-o à categoria de direito real. Em linhas gerais, através do direito de superfície o proprietário de um bem imóvel destaca de seu direito, até então pleno, uma espécie de concessão, onerosa ou gratuita, para que outra pessoa, que se chamará superficiário, utilize a superfície para plantar ou construir. Trataremos de um aspecto muito importante acerca do direito de superfície: a possibilidade de instituí-lo sobre parte específica de um imóvel.
O direito de superfície é normatizado pelo Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2002, nos artigos 21 a 24 e pelo Código Civil de 2002 nos artigos 1.369 a 1.377. Para Venosa (2005, p. 454), o Estatuto da Cidade é um microssistema e como tal “vigorará sobranceiro no seu alcance de atuação, em princípio, sobre as demais leis, ainda que posteriores.” Já na opinião de Gonçalves (2009, p. 414) “com a entrada em vigor, porém, do último diploma houve a derrogação do aludido Estatuto”. Ilustramos a divergência entre renomados doutrinadores a fim de consignar que a questão não é pacífica. Em nosso modesto entendimento Código Civil e Estatuto da Cidade devem conviver sem conflito ao tratar de direito de superfície, o primeiro aplicando-se aos bens imóveis em geral e o segundo especificamente aos imóveis urbanos, consoante o que dispõe o artigo 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil: “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.”
O direito de superfície não pode ser entendido em separado do direito de propriedade, pois ele vem a ser exatamente um desdobro do exercício pleno da propriedade. Explicando melhor: o superficiário, titular do direito de superfície, ao plantar ou construir, tem possibilidade de usar e gozar do bem imóvel, subtraindo do proprietário do imóvel tais possibilidades. Ou seja, estamos diante duas realidades jurídicas paralelas, de um lado o direito de propriedade limitado por força da instituição do direito de superfície, de outro o próprio direito de superfície que a se configura como um direito real sobre coisa alheia. 
É partindo exatamente do direito de propriedade que buscamos demonstrar que é possível instituir direito de superfície sobre uma parte específica de um determinado imóvel. “A propriedade é um direito primário ou fundamental, ao passo que os demais direitos reais nele encontram a sua essência”. (GONÇALVES, 2009, p. 221) Nessa medida, entendemos que é o próprio direito de propriedade que cria balizas ao surgimento de um direito de superfície sobre uma parte específica de um determinado imóvel. Claro que, além da vontade do proprietário, teremos que considerar aspectos de organização do solo e da função social da propriedade, antes de responder positivamente a questão central. Logo, além de o proprietário querer conceder o direito de propriedade sobre parte determinada do imóvel urbano, é necessário que seja respeitada a política urbana, no que diz respeito a tamanho mínimo de lotes, ordenação e controle do uso do solo. Se o imóvel for rural há que se obedecer aos regramentos deste âmbito, como, por exemplo, leis ambientais e obediência ao tamanho de módulo rural. Mesmo que não estejamos propriamente diante de um desdobro ou divisão do solo, cremos que essas regras devem ser obedecidas, pois existem para ordenar e garantir a consecução da função social da propriedade.   
O direito de propriedade foi inserido no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição Federal, ao tempo em que este direito é garantido, há o dever de que a propriedade atenda a sua função social, é exatamente o que vemos no artigo 5º, XXII e XXIII. Além disso, a função social da propriedade é alçada ao posto de princípio da ordem econômica, nos termos do inciso III do artigo 170 da Constituição Federal. Complementando, segundo o artigo 1.228 do Código Civil, “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” E nos termos do parágrafo primeiro deste mesmo artigo “deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais”.
Fica claro que o perfil atual do direito de propriedade no ordenamento jurídico do Brasil “deixou de apresentar as características de direito absoluto e ilimitado, para se transformar em um direito de finalidade social”. (GONÇALVES, 2009, p. 224) É exatamente nesse contexto que precisamos entender que o direito de superfície existe para possibilitar uma adequação social e econômica do bem imóvel, tornando viável o desenvolvimento social e econômico no meio rural e no urbano. Ou seja, ao conceder o direito de superfície o proprietário está ajudando a sociedade a vencer o déficit habitacional, a fomentar a produção agrícola e a aquecer a economia, além de diminuir a nociva especulação imobiliária. Por isso, impedir que seja instituído o direito de superfície sobre parte específica de determinado imóvel, por razões de ordem procedimental no que diz respeito às normas de Registro Público, vai de encontro à diretriz constitucional que deseja que os imóveis exerçam sua função social. Muitas vezes ao proprietário não interessa, por diversos motivos, instituir direito de superfície sobre todo o imóvel. Portanto, tendo em vista que o Código Civil ou a Constituição Federal, ou mesmo a lei de Registro Público, lei nº 6.015/1973, não vedam a instituição sobre parte do imóvel, impedir que institua o direito de superfície sobre parte determinada do imóvel é impedir a consecução da realização da função social da propriedade.   
A ausência de previsão legislação específica autorizando, ou não, a citada instituição nos fez buscar no âmago daquele que é o direito real por excelência, a propriedade, a fundamentação de cunho constitucional e doutrinário para autorizar a instituição do direito de superfície sobre uma parte específica de determinado imóvel. Não é possível opor questões procedimentais da Lei de Registro Público, visto que a mesma não pode ser entendida como um fim em si mesmo, é o que depreendemos do artigo 1º da Lei nº 6.015/1973: “os serviços concernentes aos Registros Públicos [são] estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”. Pelo exposto, só há uma conclusão possível, a função social da propriedade autoriza a instituição do direito de superfície sobre parte determinada do imóvel.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em 29 abr. 2012.
BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6015compilada.htm> Acesso em 29 abr. 2012.
BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm> Acesso em 29 abr. 2012.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm> Acesso em 29 abr. 2012. 

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume V: direito das coisas. 4. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009. 626 p.

 
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. 672 p.

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